Mundo imoral
Sobre ela que morreu no tiroteio com uma bala perdida achada em seu peito. Um tiro de fuzil. E se choca pensarmos em uma senhora levando um tiro de fuzil, imagina o choque de ainda ter na mente os seus gritos, os das pessoas em volta e tudo misturado aos tiros. Incontáveis tiros.
Esse texto não é sobre as frivolidades burguesas de um menino zona sul em estranhamento com um mundo de cabelos esquisitos, cheiros e referências diferentes. Muito menos é uma indignação porca como a de quem perdeu um rolex na saída de um restaurante e foi ressarcido por um empresário sensibilizado. Não tenho sequer o direito de indignar-me.
Isso porque nenhum empresário e nem ninguém pode ressarcir a vida daquela mulher, a minha noite perdida de sono ou cotidiano marginal em que muitas pessoas vivem sem serem noticiadas, lembradas ou cuidadas.
Não há proteção, escolas decentes, cultura, saúde ou qualquer política pública para salvar essas pessoas. Não há ninguém interessado nelas, a não ser as grandes cadeias de varejo que sobem as vielas onde vivem para entregar móveis de qualidade duvidosa, vendidos sob juros gigantes.
Vez em quando, vêm alguns carros de polícia cheios de homens despreparados empunhando armas tão pequenas quanto seus salários. E lógico que eles atiram ao bel prazer esperando voltar para suas famílias, pois também não acreditam que nada possam fazer. Como se matando alguns dos criminosos, pudéssemos matar o crime de tê-los criado. E seria realmente incrível ter a certeza que por milagre, sem nenhum esforço conjunto, eles não mais existiriam. Talvez, quem sabe, desistam do crime, do tráfico e distribuam uns currículos com foto nas lojas do shopping.
A nossa polícia não é para proteger o cidadão. Ela é um instrumento de proteção apenas do Estado, do statu quo, dessa normalidade aparente que fica à 30 minutos daqui, onde os engravatados passeiam tranqüilos. Os tiros são para manter tudo como está. Quem ganha dinheiro com a desgraça e miséria desse país – sim, porque onde uns perdem, outros ganham - não mora sequer aqui, não têm conta nos bancos daqui, não ouve os tiros e não come dos salgados e doces da senhora morta.
O esforço de mudar tudo isso custaria certamente muito mais do que a caixa de balas. Abrir cabeças é a única alternativa às feridas de peitos abertos.
Marcadores: bala perdida, caos, desespero, imoralidade, medo, morte, Rio de Janeiro, tiroteio